sábado, 29 de novembro de 2014

O avesso, do avesso do avesso

Sanduiche de Mortadela do Mercado Municipal


Desembarquei no aeroporto de Guarulhos, em São Paulo, por volta do meio dia de um domingo de sol, no início de novembro. Não conhecia e não queria conhecer São Paulo. Nem a música que mais adoro de Caetano Veloso (Sampa), que considero um hino a esta cidade mau vista (ao meu olhar), relaxava minha eterna vigilância contra esta metrópole em que as contradições sociais são mais aguçadas, mas, ao mesmo tempo, o reacionarismo é mais acentuado.
         E minha resistência ao paulistano e ao paulista estava à flor da pele. Estava na ressaca do resultado das eleições e das manifestações de uma direita radical, hidrófoba, despolitizada, capitaneada e apoiada por um sociólogo (FHC), pelo candidato do PSDB derrotado pela Dilma (Aécio Neves) e pelo seu vice, o ex-motorista de Carlos Marighela, esquerdista hoje envergando o capuz de uma direita sanguinária.
         E um diálogo à minha direita, enquanto aguardava surgir a bagagem nas engrenagens da esteira rolante, confirmava as minhas desconfianças em relação ao paulista e ao paulistano. Quase ao meu lado, estava um senhor meio calvo, aparentando mais de 60 anos e um jovem na faixa dos 25. Ambos bem vestidos, se bem que com a diferença das idades.  Num diálogo rápido em que os gestos valem mais do que palavras, o mais velho, com o dedo indicador, apontava e lia rapidamente os subtítulos da manchete da revista IstoÉ, com voz embargada.
         "Olhe o que eles são" bradava com o rosto avermelhado pela raiva que ia aumentando à medida que lia. A maneira quase apoplética com que balbuciava os subtítulos despertou minha curiosidade e fez com que me aproximasse para tentar compreender o que se passava e a quem era endereçada tanta raiva. Entendi de pronto. Era a Dilma, ao PT, aos nordestinos e a quem quer que tenha votado e derrotado, pela quarta vez o PSDB e também àqueles que proclamaram seu voto nulo, em branco ou se abstiveram.
         Para fechar minha triunfal chegada à cidade dos bandeirantes fui brindado com uma frase de apenas dez palavras do jovem que ouvia atentamente a pregação daquele senhor de tez branca: "Isso porque você não viu a capa da Revista Veja". A pouca bagagem minha, da mulher, da filha e do genro apareceram e minhas mãos tremiam enquanto a agarravam com sofreguidão porque achei que não deveria me envolver num bate-boca ao pisar em terras tão estranhas. Mas a vontade era a de guerrear.
         Pois é. Alguma coisa aconteceu em meu coração e eu, sequer, tinha cruzado a Ipiranga com a Avenida São João e, muito menos ainda, tinha desfilado meu charme baiano e nordestino pela estilosa Avenida Paulista, fonte de todas as manifestações de raiva, preconceito e discriminação social contra aqueles que defendem um governo progressista e o Estado Democrático de Direito que tanta ojeriza provoca à maioria dos paulistas e paulistanos.
         Pegamos o táxi e fomos para a Vila Mariana (onde mora meu filho caçula), bairro de classe média e boêmio de São Paulo. Termômetro, como dizem seus economistas, do pulsar da economia paulistana, paulista e, quiçá, brasileira. Lá, uma cerva gelada nos esperava e mais uma decepção: a derrota do Bahia para o Palmeiras, em plena Fonte Nova, início do calvário da degola da série A, para vergonha dos baianos independente das cores de seu coração.
         Oito dias depois, faço uma penitência: gostei de São Paulo. Gostei dos paulistanos. Continuo sem entender o resultado das eleições. Não houve, até este momento, uma análise fria, sem paixões deste fenômeno. Não, não apenas pelo resultado das urnas no segundo turno presidencial. Como explicar a vitória, em primeiro turno daquele que é chamado de "Picolé de xuxu", um político desprovido de carisma, de sorriso falso e de frases de efeito, claramente incompreensíveis, e envolvido no "trensalão" do PSDB.
         Como escreveu Emir Sader em seu blog, postado no site Carta Maior, em 23 deste mês, A derrota acachapante em São Paulo é a mais grave – pela sua dimensão e pela sua simbologia – entre todos os retrocessos da esquerda. Não basta explicações menores, como erros pontuais da esquerda, desempenho capital do Alckmin nas prefeituras, etc. etc. Nada disso, junto, explica o tamanho do revés, que revela uma hegemonia tucana no maior estado do Brasil, daquele com movimentos sociais com mais trajetória, com presença de dirigentes com grande trajetória política, no estado de maior luta de classes do país.

         Deve-se apelar, pra começar a Gramsci, para saber como foi possível que a direita organiza-se uma hegemonia tão sólida ao longo de duas décadas no estado que o maior nível de contradições de classe do Brasil. Análises concretas – sociais e culturais, além das políticas – são essenciais para dar conta de um fenômeno dessa proporção. E, claro, análise do PT, como partido.!.

         Deixemos os analistasSingrei, como um navegante em mar aberto, em busca de um porto. Atravessei São Paulo: da Avenida Alcântara, à Rua Oriente com a Maria Marcolina; da Avenida Paulista, à 25 de Março; da Liberdade, à Rua José Paulino, no Bom Retiro. E, claro, não podia faltar o Mercado Municipal para aproveitar a gula de um dia de andanças e tentar desfrutar, como fazem muitos paulistanos gordinhos e apressados, e comer o sanduiche de mortadela ao preço exorbitante de R$ 23,00 ou o pastel gigante, suficiente, cada, para duas ou três pessoas.
         Quem pensa que baiano vive de festa e que paulista não se diverte, só trabalha, se engana. Difícil uma vaga, em plena quarta-feira num de seus bares e restaurantes. A fila de espera é tão grande que os garçons, piedosamente, servem chope gelado enquanto todos aguardam sua vez de se entupirem de um sanduiche de mortadela de mais de dez centímetros de altura. Eles comem, engordam, mas se divertem. Mas conheci parte de seu povo.
         Sim, nordestinos de todas as cores, chineses coreanos, bolivianos. Uma infinidade de nacionalidades nascidos ou chegados. "Desceeeeu!!!!. Subiu!!!! Gritam os camelôs, interrompendo sua propaganda na Ladeira Porto Geral à aproximação da Polícia Cosme e Damião. É o sinal para se afastarem, guardarem as mercadorias expostas em caixas de papelão improvisadas.
         Entre eles, serpenteia todo o tipo de gente. Desde madames bem vestidas a mulheres e homens do povo, segurando filhos pela mão ou carrinhos onde acondicionam as mercadorias compradas em lojas populares e a preços só encontrados nessas áreas. Se algum analista quer saber do pulsar da economia paulista e paulistana deve perder a pose e descer a Ladeira do Porto Geral, desembocar na 25 de Março e esquecer a Vila Mariana. Porque esta é a economia macro. Na outra, é uma pequena parcela da classe média que desfila nos finais de semana. Na Ladeira, é a semana, por inteiro.
         Foi com este povo paulista e paulistano que convivi um pouco mais de sete dias. Sem perguntar-lhes absolutamente nada. Apenas observava, ouvia e sentia seu pulsar. A eleição acabara. Eles venceram e voltaram às ruas. A maioria para comprar. Outros, para negociar. À tardezinha, começavam a recolher suas mercadorias expostas em carrinhos, postos em passeios largos, que não prejudicam o comércio local. Dá prazer assistir a destreza com que, em poucos minutos, escondem, num intrincado jogo de esconde/esconde, uma variedade de mercadorias e arrastam seus carrinhos para depósitos, onde ficam guardados à noite.
         Pela manhã, retomam sua rotineira vida de trabalho. Entre uma venda e outra, discutem do Campeonato Nacional às notícias da Delação Premiada que atingem em cheio, políticos, empresários e alguns dirigentes da Petrobras. Tomam partido, mas não seguem as manchetes de revistas e jornais. Todo mundo é culpado. Para eles, terceiro turno, impeachment, corrupção, passeatas, golpes militares é para quem não tem o que fazer.
            Eu, após estes oito dias, revi meus conceitos. Vi São Paulo, os paulistas e paulistanos no comércio da Liberdade (a nossa), da Baixa dos Sapateiros, do Comércio, do Uruguai, do Tabuão. Mas vi também São Paulo do Rio Vermelho, do Mercado Modelo, da Tancredo Neves. O que não vi foi a São Paulo das manchetes, dos quatrocentões e, muito menos, a São Paulo da divisão. Esta vive em guetos que, vez em quando, é chamada e incentivada a agir pelo outro gueto: uma imprensa golpista que teima em não esquecer 54 e 64.


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